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Uma Breve Reflexão sobre a Incredulidade de Ser em Tempos de Confinamento e Isolamento Social.

Por Marcelo Maia Vicente

-Formado em Filosofia (Faculdades Claretianas de Batatais - SP)

-Pós Graduado em: História Moderna e Contemporânea (FFCeL de Paranaguá)

-Filosofia para Crianças (USP - SP)

-Filosofia Contemporânea (UFPR - Pr)


Marcelo Maia Vicente

Vivemos períodos de grandes movimentos, certezas e incertezas, crises econômica, política, social, isso sem falar na grande crise do conhecimento e no Brasil, o absurdo debate sobre as ideologias (todos os discursos são ideológicos, o importante é saber o que é ideologia e qual é a sua ideologia, para longe de todas as estupidificações).


A humanidade enfrenta desafios diários e a eles, hoje, soma-se a pandemia gerada pela COVID-19, que nos colocou frente a frente a nossa finitude, simplicidade e incapacidade, esperançosamente temporária, diante de um vírus que nos adoece, nos mata, nos isola, nos confina.



Infinitas são as discussões necessárias para este momento, mas vimos propor uma reflexão tão necessária e tão descartada quanto, para este interim, a relação do existir e a autenticidade do ser, nesse momento de absurdos que buscam anular o específico e o diverso, nessa sociedade que se isola (ou deveria...) mas teima em não se entender como um todo igual em meio a todas as diferenças.


De acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de autoria de José Pedro Machado (1990) o termo existir origina-se "do latim ex(s)istere, sair de, elevar-se de, nascer, provir de, manifestar-se, mostrar-se". Sendo assim, encontram-se duas condições nessa terminologia onde, existir é elevar-se de si mesmo e ter a capacidade de observar-se, de pensar o seu próprio ser e por consequência o mundo circundante; e ainda, manifestar-se ou mostrar-se, o que implica diretamente na necessidade do outro, a quem o existente manifesta-se e ao mesmo tempo, inversamente, o observa também como manifestação, ou seja, há um eu existente e o outro (um não eu que existe).


Para compreender essa relação Existencial recorremos ao Existencialismo proposto pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), baseado na liberdade absoluta e individual dos sujeitos, no engajamento social e na construção da existência uma vez que nada está determinado.


Partamos, vários foram os confinamentos aos quais a humanidade fora submetida, sempre forçosamente, ou por ideologias de superioridade (campos de concentração, senzalas, guetos, etc.) ou por princípios religiosos (comunidades isoladas, claustros, eremitérios, etc.) ou por cultura (aldeias e povos isolados, etc), como exemplos.


Em grupos ou sozinhos a humanidade experimentou isolamentos tão diversos aos quais soma-se o atual, mas isolar-se traz em si a questão básica do sobreviver. Não descartando os confinamentos do passado que foram genocidas, mesquinhos e odiosos, mas focando no atual, geral, global, temos que sobreviver, temos que garantir os meios para nossa continuidade. Mas algumas perguntas escapam por entre os dedos: sobreviver para que? existir para que? qual é o sentido de tudo isso? ou qual o sentido da existência do eu?


Em sua obra Sartre utiliza-se, também, da dramarturgia para expor a sua visão do existencialismo, e nesses tempos incertos de isolamento e distanciamento social, torna-se muito atual seu texto produzido para o teatro intitulado: "Entre Quatro Paredes"(1944).


Uma vez que, no atual, modelo de isolamento social, na grande maioria dos casos, as relações se constroem entre o Eu e o Outro, mesmo essa relação não sendo da vontade dos indivíduos, mas sim produzida pelo rigor das necessidades.


Na peça "Entre quatro Paredes" os três personagens principais encontram-se presos em um quarto selado e aos poucos percebem-se mortos e ainda que o quarto é o inferno, sem os arquétipos esperados de tal local, e mais espantoso por não apresentar a figura de um torturador.


Joseph Garcin é o primeiro a entrar no quarto, seguido por Inês Serrano, que ao perceber Garcin, por ser homossexual, fica constrangida ao seu olhar. O terceiro personagem a chegar é Estelle Rigault, que atrai os olhares de Inês e a indiferença de Garcin.


Assim, os três existentes, estranhos entre si, confinados em um cubículo, passam a pensar a situação em que se encontram.


Ora, conviver traz seus contrastes e dissabores, as diferenças afloram. Inês é a primeira a perceber que a condição que lhes cabe é permanecerem isolados, juntos e para sempre, mas permanecia incomodada pela ausência de um torturador diabólico.


Refletindo sobre a alegoria do inferno, pode-se pensar o próprio inferno como sendo o convívio forçoso, onde é possível a adequação de um ao outro, de acordo com os padrões predeterminados pela imposição dos valores morais e estereótipos dominantes, submetendo uns aos outros.


O torturador, não é ausente, mas sim o outro sujeito do convívio a quem o eu se submete. Da mesma forma que a convivência determina, inexoravelmente, adentrar na intimidade, na subjetividade do outro. Na convivência, erroneamente, usa-se a expressão "nada tenho a esconder", porém, há sempre uma sombra no "Eu", um vazio, um "Nada de Ser" que vem a ser preenchido pela consciência de si e do mundo, assim, "se nada tenho a esconder" é porque há no ser aquilo que lhe falta para realmente ser, que é a completude de um projeto existencial que está sempre em aberto, uma vez que, como diz Sartre: "a existência precede a essência".


Porém, se o eu (o ser) é um projeto de ser, o outro, de acordo com Sartre, "é o que eu não sou". O outro nega o eu, mas ao mesmo tempo possibilita-lhe a percepção da individualização, ao mesmo tempo em que o eu também, no convívio, é o outro para alguém, ou seja, o eu é observado e observa o outro, percebe o que é e o que pode ser de acordo com seu projeto existencial, que nada tem a ver com profissão, salário, posição social, mas respondendo a pergunta já feita, esse projeto existencial está ligado ao "sobreviver para que?", "existir para que?", "o que vou vir-a-ser?".


O outro, mesmo sendo uma experiência única e exterior, observa e julga, conhece e reconhece. Ao olhar do outro o sujeito (eu) passa a ser conceituado para além de si mesmo, limitando o eu na petrificante objetivação alheia, daí a expressão do existencialismo sartreano: "o inferno são os outros", ou seja, a submissão do eu ao julgamento do outro e a sua acomodação a essa condição que o paralisa e não o possibilita realizador de seu projeto existencial. Contudo, não pode-se esquecer que o outro é necessário pois faz a mediação entre "mim e mim mesmo" e assim há uma reorganização daquilo que sou (ou pelo menos deveria acontecer).


De acordo com Sartre, é necessário apreender que pelo olhar do outro é possível redimensionar o ser. Inicialmente o olhar do outro traz a angústia, pois desnuda o ser que "nada tem a esconder", tirando-lhe as defesas, por vezes "infernizando-o". Entretanto, mesmo angustiado o olhar do outro permite o repensar da existência de si mesmo (quanto mais íntimo o olhar mais profundo o desnudar, a angústia e a possibilidade de refazer-se, do vir-a-ser), em outras palavras o olhar do outro leva o eu ao âmago da sua existência, o eu está fadado a ser livre, livre para vir-a-ser de acordo com sua própria consciência e projeto, tão livre e tão responsável por si mesmo e pelas consequências da sua construção e relações no mundo, pois o eu é sempre um ser no mundo e responsável por isso.


Por fim, absortos nesta quarentena pelos problemas cotidianos, pela convivência real ou virtual, pelos contatos familiares aproximados, pelas confinidades, há a possibilidade de pelo olhar do outro nos refazermos, de nos subjetivarmos, de nos humanizarmos (Sartre já determinou que o existencialismo é um humanismo) e encontrar as respostas para as também perguntas anteriores e posteriores: "qual é o sentido para tudo isso?" e ainda "como eu sairei disso?" sendo livre, "como construirei e desconstruirei a minhas quatro paredes?" se responsável por mim e pelo mundo circundante "qual o princípio ético norteador do meu projeto existencial?" se humanidade é tudo aquilo que nos iguala fantasticamente somado a todas as diferenças "qual é o legado da minha existência para a realização de um mundo concretamente possível para todos?"....

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